Histórias

O vinho me inspirou a escrever algumas histórias.
São as saudades que afloram como os inesquecíveis aromas dos Tannats de minha juventude.
José Hodara

MEU AMIGO, O VINHO
Quando estou à mesa, em roda de amigos, é o Vinho que me ajuda a escutar com atenção e liberar as melhores frases da conversa. Quando estou sozinho, é o Vinho que me transporta aos campos das videiras, aos cheiros da cantina, ao silêncio dos tonéis e ao frescor de cada garrafa.
Às vezes, meu Vinho e eu entramos em meditação: só nós dois. Ele, oferecendo sua magia, e eu recebendo sua silenciosa comunicação de aromas, cores, sabores e sensações. Outras vezes, de seu cristalino cálice, ele fica me observado com seu olho de rubi intenso, aguardando quieto, pensativo, as minhas possíveis manifestações de alegria ou tristeza.

COPO E GARRAFA

Meu Vinho, você me conquistou, me afundou no conhecimento de teu líquido, de tua cultura, e se converteu no meu grande amigo, o grande aliado de meu silêncio, de meus sentimentos, o grande companheiro que com sabedoria e simplicidade afaga minha alma e me rejuvenesce.
E eu também me fiz o teu amigo e sei que nunca vou te deixar, a menos que o médico me proíba de te beber; mas, nesse caso, por favor, não fique triste: bastará que eu troque de médico e continuaremos juntos. Porque quando te bebo, meu caro Vinho, eu viajo com minhas papilas até encontrar a origem de tua terra: vislumbro tua paisagem, percebo as vibrações de tuas videiras perfurando com suas raízes as camadas mais profundas do subsolo para extrair as sustâncias que alimentarão teus frutos que te farão novamente renascer.
Você, meu Vinho amigo, sempre me surpreende com seus mistérios: o mistério da uva transformada em vinho, o mistério dos aromas, o mistério da simplicidade que o enaltece e o mistério da poesia que brota de teu cálice.

Rio de Janeiro, fevereiro de 2009.
José Hodara

* * * * * * *

O PRIMEIRO VINHO QUE EU FIZ
Montevidéu, 1970. Minha filha Julianne era recém-nascida e nossa pequena família morava num apartamento de fundos, na Rua Alicante, 1722, no bairro Ramón Anador.
Ao lado do nosso prédio havia um casarão no centro do terreno, cujo jardim era protegido da calçada por uma cerca e um portão de telha de arame. Suas paredes eram altas e o telhado de zinco. Nele morava um casal de velhos italianos, ambos muito baixinhos, fortes, saudáveis e de rostos enrugados pela vida. Eles não tinham filhos nem familiares.
Ela, Dona Catarina, varria a calçada todas as manhãs usando um avental marrom e na cabeça um lenço de cores desvanecidas. Já Dom Antônio, com uma camiseta branca amarelada de três botões na gola e as calças recolhidas até os joelhos, lavava sua cachila (palavra em espanhol para designar carro velho) dia e noite estacionada na porta da casa.

CACHILA

A cachila era um Ford “T” 1929. E eu estava fascinado pelo carro de Dom Antônio: ele tinha para-lamas pretos, carroceria verde-escura, faróis cromados e teto conversível de lona preta. Ao se abrir o porta-malas, surgiam mais dois bancos por cima de um baú amarrado ao chassi por cintos de couro.
Um dia, enquanto Dom Antônio lavava seu carro, eu passeava pela rua com minha filha. Ao vê-lo, aproximei-me dele e comecei a puxar assunto, elogiando seu Ford “T”. E a partir de então nos tornamos amigos.
Numa quente manhã de fevereiro, estacionou atrás de “la cachila” um enorme caminhão carregado com caixotes de madeira que transbordavam de uvas tintas. O cheiro de fruta madura tomou conta de todo o nosso quarteirão.
Os homens do caminhão começaram a descarregar as uvas na porta do meu vizinho enquanto Dom Antônio e Dona Catarina pegavam os caixotes e os levavam para dentro de casa. Eu, que observava a cena, me ofereci para ajudar. Tive que insistir um pouco, mas afinal fui aceito. Com muito esforço, atravessamos o interior da casa com nossas caixas, passando por um corredor escuro que cheirava a madeiras úmidas, até chegar ao galpão do fundo, onde a imagem de uma imensa cantina com frescor medieval e aromas de vinho se descortinou ante meus olhos.
Eu não podia acreditar que ao lado da minha casa existia um mundo de fantasia! Ali, tonéis, tanques de madeira para fermentação, recipientes e mangueiras estavam arrumados para receber as uvas.

ITALIANO NA ADEGA

Quando acabamos de transportar todos os caixotes da rua para a cantina, já era meio-dia. Foi então que Dom Antônio pegou da prateleira três canecas esmaltadas, abriu a torneirinha de madeira de um tonel e as encheu de vinho fresco. Sentamos em rústicos banquinhos para descansar, beber e conversar. Foi um íntimo symposium. Perguntei-lhe se o vinho que ele e a esposa produziam era para vender. Minha pergunta provocou risos em ambos, e suas bocas mostraram os dentes de ouro junto a outros dentes escurecidos.
— Para vender?, perguntou Dona Catarina. Hahahá! Fazemos o vinho para bebê-lo no almoço e no jantar durante o ano todo.
Dom Antônio agradeceu minha ajuda e insistiu para que eu ficasse para o almoço, para comer a macarronada de sua esposa. Então Dona Catarina acrescentou com orgulho:
— O molho foi feito com tomates e manjericão do nosso quintal.
Impossível recusar. Deixamos a cantina e voltamos para a casa, onde, perto do fogão a lenha, uma mesa velha e aconchegante nos aguardava com uma garrafa de um litro de vinho tinto.
Num instante Dona Catarina secou as mãos no avental e dispôs sem cerimônia três garfos, três copos e, no centro da mesa, uma grande travessa de louça com a macarronada. A seguir, Dom Antônio encheu os copos de vinho. Nesse momento descobri que, conforme o costume da casa, não havia pratos individuais; portanto, com o garfo se pegava a comida da travessa, que ia diretamente à boca.
O aroma do vinho, misturado ao delicioso cheiro da macarronada, e a alegria que brilhava nos olhos dos velhinhos permanecem até hoje em minha memória — e a emoção que isso me causa é, eu acho, idêntica a que teria caso houvesse participado da “festa de Babette”.
Entusiasmado, eu disse:
— Quero fazer meu vinho. O senhor me ensina?
Dias depois, eu trazia para o pequeno quintal do meu apartamento uma tina grande, “damajuanas” (garrafões de dez litros protegidos por cestas de palha), funis, mangueiras, rolhas de cortiça e outros apetrechos. Em seguida, encomendei minha primeira remessa de uvas.
Conforme instruções de Dom Antônio, retirei todos os cabinhos dos cachos e joguei os bagos no recipiente para fermentar. Então tomei um banho, escovei bem meus pés e pernas, vesti um short velho e entrei no tanque para amassar as uvas. Eu pisava, dançava e pulava nas coitadas das uvas enquanto o cheiro me embriagava, até que comecei a rir e chorar de alegria. Minha alegria transformou-se em mosto. Após uma semana de fermentação no tanque, passei o vinho para as “damajuanas” e, à medida que o vinho decantava, eu o transferia para as garrafas, fazendo com que ficasse menos turvo e mais puro.
Durante um ano as garrafas repousaram num canto fresco lá de casa. No primeiro aniversário de minha filha, abri uma de minhas garrafas de vinho e o ofereci a meus amigos e familiares. Todos gostaram e me elogiaram muito. Hoje eu sei que aquele meu primeiro vinho não era bom. Mas foi o vinho de que mais desfrutei na minha vida.

Rio de Janeiro, março de 2008.
José Hodara